A Septuaginta: A Tradução Grega que Moldou o Mundo
A Septuaginta, frequentemente identificada pela sigla LXX (o número 70 em algarismos romanos), é a mais antiga e influente tradução das Escrituras Hebraicas para o grego. Realizada entre os séculos III e I a.C., essa obra não apenas tornou os textos sagrados judaicos acessíveis ao mundo helenístico, mas também se tornou a base para o Antigo Testamento da igreja cristã primitiva, influenciando profundamente a teologia ocidental.
Como a Septuaginta Foi Criada? A História e a Lenda
A origem da Septuaginta é uma mistura de necessidade histórica e tradição lendária.
•A Necessidade Histórica: Após as conquistas de Alexandre, o Grande, o grego koiné se tornou a língua franca do Mediterrâneo. Em Alexandria, no Egito, um grande centro cultural e intelectual, florescia uma numerosa comunidade judaica que, com o passar das gerações, já não compreendia o hebraico. Surgiu, assim, a necessidade prática de uma tradução das Escrituras para o grego, a língua do dia a dia, para uso litúrgico e estudo.
•A Lenda dos Setenta (e dois) Sábios: A história mais famosa sobre sua criação vem da "Carta de Aristeias", um documento do século II a.C. Segundo a carta, Ptolomeu II Filadelfo, rei do Egito (285-246 a.C.), desejando incluir os textos sagrados judaicos em sua grandiosa Biblioteca de Alexandria, solicitou ao sumo sacerdote em Jerusalém que enviasse tradutores. Em resposta, 72 sábios judeus, seis de cada uma das doze tribos de Israel, foram enviados a Alexandria. A lenda conta que eles completaram a tradução em 72 dias e, embora trabalhando separadamente, produziram versões milagrosamente idênticas. Essa narrativa, embora considerada fictícia pelos estudiosos modernos, serviu para conferir um status de inspiração divina à tradução. O nome "Septuaginta" (latim para "setenta") deriva do arredondamento desse número.
Cronologia da Tradução
A criação da Septuaginta não foi um evento único, mas um processo gradual que durou cerca de dois séculos.
•Século III a.C. (c. 250 a.C.): A tradução começou com a Torá (o Pentateuco, os cinco primeiros livros de Moisés), que era a parte mais central das Escrituras Hebraicas.
•Séculos II e I a.C.: Os demais livros, incluindo os Profetas e os Escritos (como Salmos e Provérbios), foram traduzidos progressivamente ao longo dos duzentos anos seguintes.
Quantas Versões Existiram?
Falar de "uma" Septuaginta é uma simplificação. Na realidade, a LXX é mais uma coleção ou família de textos gregos do que uma única versão monolítica.
•A "Antiga Versão Grega" (Old Greek): Refere-se às traduções originais de cada livro. A qualidade e o estilo da tradução variam consideravelmente de livro para livro, alguns sendo muito literais e outros mais livres.
•Revisões e Recensões Posteriores: Com o tempo, surgiram outras traduções e revisões gregas, muitas vezes para alinhar o texto grego mais de perto com os manuscritos hebraicos que se tornavam padrão. Entre as mais importantes estão as de:
•Áquila de Sinope (c. 130 d.C.): Uma tradução extremamente literal, favorecida por judeus que se opunham ao uso cristão da LXX.
•Símaco, o Ebionita (final do século II d.C.): Conhecido por seu grego elegante e idiomático.
•Teodócio (meados do século II d.C.): Uma revisão da LXX, que se tornou muito popular, especialmente sua versão do livro de Daniel.
•A Héxapla de Orígenes: No século III d.C., o erudito cristão Orígenes compilou a Héxapla, uma monumental obra de crítica textual que dispunha em seis colunas paralelas: o texto hebraico, uma transliteração grega do hebraico, e as versões de Áquila, Símaco, a Septuaginta e Teodócio. Embora a maior parte desta obra tenha se perdido, ela é um testemunho da diversidade de versões gregas que circulavam.
Todos Aceitam a Septuaginta como Sagrada?
A aceitação da Septuaginta varia significativamente entre as diferentes tradições religiosas.
•Judaísmo: Inicialmente, a Septuaginta foi celebrada pela comunidade judaica helenística. No entanto, à medida que os cristãos começaram a usá-la extensivamente para fundamentar suas doutrinas, especialmente as profecias messiânicas, o judaísmo rabínico gradualmente se distanciou dela, favorecendo o texto hebraico que mais tarde seria padronizado no Texto Massorético.
•Cristianismo Primitivo: Para os primeiros cristãos, a Septuaginta era, efetivamente, "a Bíblia". Sendo a Escritura mais acessível no mundo de língua grega, ela foi o texto principal usado pelos apóstolos e evangelistas.
•Igrejas Ortodoxas: A Igreja Ortodoxa Oriental continua a considerar a Septuaginta como sua versão oficial do Antigo Testamento até hoje.
•Igreja Católica: A Igreja Católica também tem a Septuaginta em alta estima. O cânon católico do Antigo Testamento inclui livros (chamados de deuterocanônicos) que estão presentes na Septuaginta, mas não no cânon judaico ou protestante, como Tobias, Judite, Sabedoria, Eclesiástico, Baruque e I e II Macabeus. A Vulgata Latina, tradução de Jerônimo que se tornou a Bíblia oficial da Igreja Católica por séculos, foi fortemente influenciada pela LXX.
•Protestantismo: A Reforma Protestante, com seu princípio de ad fontes (às fontes), priorizou o texto hebraico (Massorético) para o Antigo Testamento. Por isso, as Bíblias protestantes seguem o cânon judaico e geralmente excluem os livros deuterocanônicos, que são por vezes chamados de apócrifos.
A Relação do Novo Testamento com a Septuaginta
A influência da Septuaginta no Novo Testamento é imensa e inegável.
•Citações Diretas: A maioria das citações do Antigo Testamento encontradas no Novo Testamento é retirada diretamente da Septuaginta. Estima-se que, das cerca de 350 citações do Antigo Testamento, aproximadamente 300 vêm da versão grega.
•Influência Teológica e Linguística: A LXX forneceu o vocabulário teológico para os escritores do Novo Testamento. Por exemplo, a palavra grega parthenos (virgem) é usada em Isaías 7:14 na Septuaginta, uma leitura que é fundamental para a narrativa do nascimento de Jesus em Mateus 1:23. Da mesma forma, a palavra doxa, que em grego clássico significava "opinião", adquiriu o sentido de "glória" divina através de seu uso na LXX, e é com esse sentido que aparece no Novo Testamento.
Mistificações e Controvérsias
A história da Septuaginta é cercada por debates e mitos.
•O Mito da Tradução Perfeita: A lenda de que 72 tradutores produziram textos idênticos é vista como uma tentativa de dar autoridade divina à tradução, mas não é um fato histórico.
•Uma Única "Septuaginta": Como mencionado, não existe um único manuscrito original da Septuaginta, mas sim uma família de textos com variações.
•Os Livros "Apócrifos": A inclusão de livros adicionais na Septuaginta reflete a fluidez do cânon judaico antes de sua fixação definitiva por volta do final do século I d.C. Esses livros eram lidos e respeitados por muitas comunidades judaicas na diáspora. Sua designação como "apócrifos" ou "deuterocanônicos" depende da perspectiva teológica de cada tradição religiosa.
Em resumo, a Septuaginta é muito mais do que uma simples tradução. É um monumento cultural e religioso que serviu de ponte entre o mundo judaico e o helenístico, formou a base textual para a Igreja Cristã primitiva e continua a ser uma ferramenta indispensável para o estudo da Bíblia e da história da religião.
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